
Isto é bom! ou Yayá, você quer morrer? – a tradição oral e a tradição escrita no lundu
Resumo: Com o objetivo de compreender as matrizes musicais e culturais da música brasileira popular, torna-se necessário analisar comparativamente a canção popular como registrada na forma escrita e como transmitida pela tradição oral. Três versões do lundu Isto é bom, de Xisto Bahia (1841-1894) – como publicado com o título Yayá, você quer morrer por Eugéne Hollender (São Paulo, s.d.) e gravado por Nara Leão em 1977, e na tradição oral (gravado por Eduardo das Neves, entre 1904-1911) – são discutidas em termos de prosódia, estrutura e interpretação.
Palavras chave: lundu, prosódia, canção popular.
Abstract: In order to understand Brazilian popular music musical and cultural matrices, it is necessary to study comparatively how popular song functions in an aural and written form. Three versions of the lundu Isto é bom by Xisto Bahia (1841-1894) – a score arranged for voice and piano, its 1977 recorded version sang by Nara Leão, and an early Twentieth century recording by popular artist Eduardo das Neves – are discussed in terms of prosody, structure, and interpretation.
Key words: lundu, prosody, popular song.
Prosódia musical tem sido entendida como o ajuste das palavras e da música, de modo que o encadeamento e sucessão de sílabas fortes e fracas coincidam com os tempos fortes e fracos do compasso. Na prática observa-se que todos parâmetros sonoros (intensidade, altura, duração e timbre) podem interferir na ênfase do texto.
Nas canções brasileiras o número de sílabas do verso e seu padrão de acentuação nem sempre coincidem com o número de tempos e localização de acento do compasso musical. Esta peculiaridade aparece nas partituras sob a forma de síncopes internas e em antecipações do tempo forte atravessando a linha imaginária dos compassos. Exemplo emblemático do último é o lundu de Cândido Inácio da Silva (c. 1800-1838) para versos de Araújo Porto Alegre (1806-1879), Lá no largo da Sé velha, composto na primeira metade do século XIX e estudado por Mário de Andrade em 1944.
De fato, existem várias instâncias de uma certa incompatibilidade prosódica entre letra e música identificáveis na partitura impressa. Esta fricção entre a chamada “divisão” da letra e “compasso” da canção é resolvida no momento da performance, com o que chamei em outra instância de “métrica derramada” (Ulhôa 1999)¹. “Derramar” a métrica é às vezes necessário para manter a inteligibilidade e naturalidade do canto. Doriana Mendes e Rodrigo Lima são particularmente felizes ao interpretar Lá no largo da Sé velha (Duo Laguna, Rio de Janeiro, 2000), Doriana “descolando” a divisão do texto da marcação do compasso, Rodrigo “amaciando” as acentuações com um acompanhamento arpejado ao violão².
Uma outra maneira de se aproximar de práticas interpretativas distantes no tempo como é o caso das modinhas e lundus do século XIX, é observar registros de repertório tradicional oitocentista que chegaram a ser gravados no início do século XX. A escuta desses fonogramas permite a comparação da versão gravada diretamente da tradição oral, com a partitura, elemento da tradição escrita, sendo uma porta de entrada para discutir algumas das práticas interpretativas de repertórios antes de interesse meramente “históricos”.
Examinemos, portanto o lundu Isto é bom, de Xisto Bahia (1841-1894) como publicado em partitura (com o título Yayá, você quer morrer), de onde foi feito o arranjo de Radamés Gnatalli para a gravação por Nara Leão em 1977, e na tradição oral (gravada por Eduardo das Neves no disco Odeon 108076, entre 1904-1911). Através da comparação das três versões são feitas algumas considerações sobre a prosódia, estrutura e interpretação da canção brasileira popular³.
O que chama a atenção inicialmente no caso de Isto é bom com Eduardo das Neves e Yayá, você quer morrer com Nara Leão é que as melodias (e parte dos versos) são diferentes, dando a impressão até que sejam músicas distintas... A autoria é fácil de comprovar. Ambas versões são realmente de Xisto Bahia, a última pela inscrição na partitura e a primeira por observações faladas na própria gravação. A confirmação é encontrada com a ajuda de Mello Moraes Filho no livro Cantares brasileiros [1901], onde aparece a letra de Isto é bom, com a indicação de ser do repertório de Xisto Bahia. A ordem das quadrinhas (a maioria com sete sílabas, ou seja, em redondilha maior) é (primeiros versos):
A renda de tua saia...
Levanta a saia mulata...
Iaiá, você quer morrer...
O inverno é rigoroso...
Se eu brigar com meus amores...
Me prendam a sete chaves...
Ou seja, alguns versos presentes numa versão e outros presentes noutra, sem uma ordem lógica, apontando para uma característica do lundu: versos improvisados e estribilho curto (como depois ficou sendo a prática no partido alto)⁴.
Observemos, no entanto a versão escrita e a versão gravada a partir da partitura. Discutindo somente uma quadra podemos observar imediatamente algumas diferenças (Exemplo 1). Na partitura e na transcrição do que faz Nara Leão, parece que a versão de Nara é mais “sincopada”, com antecipações quase que sistemáticas de tempos fortes ou parte de tempos fortes.

Exemplo 1. Primeiros versos de “Yayá você quer morrer” na partitura e a partir da gravação.
A primeira frase “Yayá, você quer morrer” transcorre sem problemas de prosódia. A frase seguinte “quando morrer morramos juntos” é mais complicada. Na versão escrita observe-se que a sílaba “do” de “quando” cai num tempo forte. A versão de Nara/Gnattali “antecipa” o início do verso de modo a deixar que a sílaba tônica de “morrer”, palavra mais importante que “quando” caia no início do compasso, mas faz o mesmo com o início do outro compasso. Ficou mais sincopado? Ou simplesmente “derramou” a métrica? Coisas do tipo continuam acontecendo na peça inteira.
E a comparação entre Iaiá, você quer morrer e Isto é bom? O estribilho é o mesmo, confirmando serem a mesma canção. A grande diferença está no contorno melódico (Exemplo 2). Na versão com Nara Leão o refrão é cantado numa melodia pendular, indo do sol 2 ao dó 3 e às vezes ao si 2, ou seja, ora na tônica, ora na dominante. O estribilho com Eduardo das Neves começa no fá 3 bequadro, descendo em terças e parando no mi e depois no ré, retoma o fá e descamba até terminar no sol 2 inferior.

Exemplo 2. Estribilho transcrito das gravações com Nara Leão e Eduardo das Neves.
Nos versos a mesma coisa (Exemplo 3): a versão de Nara Leão começa no sol 2, atingindo com um salto o dó 3, repousando no si 2 (“Yayá você quer morrer”). O segundo verso começa também no sol 2, salta até o mi 3 e termina por uma apojatura inferior no ré 3 (“quando morrer morramos juntos”). O terceiro verso atinge a nota mais aguda lá 3 a partir do sol 3, desce num arpejo até o sol 2 e salta novamente para o sol 3 com uma apojatura superior. É o verso de registro mais agudo, enfatizando os verbos querer e caber tanto na métrica quanto na altura (“qu’eu quero ver como cabe”). O último verso conclusivo é até um pouco “disfórico”, como diria Luiz Tatit pelo movimento descendente até o sol 2 partindo da nota mi 3 (“numa cova dois defuntos”).

Exemplo 3. Início das estrofes com Nara Leão e Eduardo das Neves.
A versão de Eduardo das Neves, de sonoridade modal praticamente não usa saltos, declamando o texto dos versos em torno da nota final (Sol), mas com a sensível abaixada (“O inverno é rigoroso, já dizia a minha avó, quem dorme junto tem frio, quanto mais quem dorme só!”).
Ou seja, estamos diante de duas canções condicionadas por seu meio de registro e transmissão, a prosódia musical mediando práticas sociais diferenciadas que se mostram na oposição verso/estribilho. Numa a ênfase na interpelação, noutra na reiteração. A versão escrita varia a melodia com saltos percorrendo a extensão de uma oitava mais uma nota com desenvoltura e movimento nos versos e mais contida, utilizando somente a metade inferior da sua escala, no estribilho. Aqui a ênfase está nos versos, na diferença enquanto o refrão funciona apenas como um repouso para a retomada de outra estrofe. A versão tradicional funciona exatamente ao contrário, a parte dos versos na metade superior da escala numa melodia em terraço e o estribilho percorrendo uma extensão de uma sétima (fá 3 ao sol 2). Na versão popular o estribilho se torna a parte mais importante, enfatizando o lúdico, o irônico e o travesso.
Mas será que estas práticas se opõem? Como conclusão gostaria de compartilhar algo que só apareceu no laboratório, mas que pode abrir novos rumos na questão. Para comparação as 3 versões estão em Dó M, seja da partitura (original em Lá M) seja das gravações (transcritas por Roberto Gnatalli). Os exemplos foram preparados no programa Finale por Mônica Leme, que está estudando a produção de Eduardo das Neves. Ao ouvir todas as partes em arquivo midi, incluindo sua própria transcrição da gravação de Isto é bom Mônica observou que as versões não são incompatíveis, como pode parecer à primeira vista. A hipótese que fica para ser explorada é que talvez o arranjo de “xxx” pudesse ter sido concebido como uma variação destinada a ser cantada em dueto com a versão tradicional, algo bastante plausível se considerarmos a prática musical da música de salão da época. Assim as sinhazinhas poderiam exibir seus dotes vocais enquanto a audiência, ou um enamorado cantava a canção gravada na memória de todos: “Isto é bom, isto é bom, isto é bom que dói!”.
Notas de rodapé
- O que é escrito como “antecipação” nas palavras de Mário de Andrade ao escrever sobre o lundu de Cândido Inácio da Silva indica mais uma flexibilização dos limites do compasso do que uma “síncope” ou “contrametricidade”, na conceituação de Carlos Sandroni (2001). No meu entender ir contra a métrica é diferente de derramá-la, o último procedimento sendo mais próximo do que acontece na prática interpretativa da canção brasileira.
- Existe uma outra versão de Lá no largo da Sé velha pelo Quadro Cervantes, solo de Helder Parente (Quadro Cervantes – Brasil 500 anos, Rio de Janeiro, LSB150484, 2000), que utiliza uma versão para canto e violão por F. Hidalgo, impressa por Arthur Napoleão.
- Tanto a partitura de Yayá você quer morrer (Eugéne Hollender de São Paulo, s.d.) quanto sua gravação (álbum duplo Cantares Brasileiros - 1 A Modinha, Cia Internacional de Seguros, Natal de 1977) foram encontradas no acervo Mozart de Araújo (1904-1988) abrigado no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB-RJ). Pesquisador meticuloso, Mozart de Araújo se interessou muito pela investigação da música brasileira, tendo estudado, sobretudo sobre a modinha, o lundu (Araújo 1963). Para uma revisão atualizada dos estudos em torno da modinha ver Veiga 1998.
- “Isto é bom” é o primeiro verso do estribilho, enquanto “Yayá, você quer morrer” é o primeiro verso da quadrinha inicial do arranjo escrito por “XXX”. Isto não chega a ser um problema, uma vez que as canções tradicionais são conhecidas ora pelo primeiro verso das estrofes não repetidas ora pelo verso inicial do refrão.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Mário de. Cândido Inácio da Silva e o Lundu. Revista Brasileira de Música vol X, p. 17-39, 1944.
ARAÚJO, Mozart de. A Modinha e o Lundú no século XVIII. São Paulo: Ricordi, 1963.
MORAES FILHO, Mello. Cantares brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Livro, 1982 [1901]).
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917- 1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Editora UFRJ, 2001.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Métrica Derramada. Brasiliana 2, p. 48-56 , 1999.
VEIGA, Manuel. Estudo da Modinha Brasileira. Revista de Música Latino Americana, v. 19, University of Texas, 1998.
Tempo de leitura
21min 36sec
Ajude o instituto
Musica Brasilis
Para manter a música brasileira viva, o Instituto conta com a doação de diversos colaboradores. Faça parte.
Quero doar